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Agro 4.0: tecnologia para mais desigualdade no campo

Fecha: 2021-04-01

Medio: Semana ON (Online)   Autor: Joyce Souza   Audiencia: 0
http://semanaon.com.br/coluna/19/18406/agro-4-0-tecnologia-para-mais-desigualdade-no-campo ["Digite a informacao que vocé procura. Buscar COLUNA AGROMUNDO Agro 4.0: tecnologia para mais desigualdade no campo Digitalizagdo promete mais eficiéncia - e, no Brasil, cai como luva para o discurso ‘pop'. Agronegécio ja emplaca edital para empresas de extracdo de dados. Valiosos, abririam imensa vantagem para megaempresas contra produgao familiar Postado em 31 de Marco de 2021 - Joyce Souza - Le Monde Diplomatique Brasil Tweet Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus prdprios leitores. O avanco das tecnologias digitais sobre todos os terrenos da vida humana é uma realidade incontornavel ja ha algumas décadas. Apesar da nitidez em que se nota a marcha das tecnologias digitais nos centros urbanos, ainda nao 1 esta ge ee clara 0 impacto que essas tecnologias terao no campo. De acordo com o relatério Digital f Oric: e a f reas, apresentado pela Organizacgao das Nacées Unidas para Alimentacao e ‘Aaricultura (FAO), em 12019, oO Fell agricola passara por uma revolucao digital que sera a mais transformadora e disruptiva entre todos os setores, porque nao alterara somente a forma de cultivo, mas todos os elos da cadeia agroalimentar. Segundo os pesquisadores responsaveis pelo estudo, Nikola Trendov, Samuel Varas, e Meng Zeng, a digitalizagao ea automacao inteligente devem contribuir com 14% do PIB global em 2030, 0 equivalente a cerca de US$15 trilhdes no valor de hoje. Como em todos os setores industrias, a tecnologia digital tem sido apresentada como algo fundamental e imprescindivel também para a operacao do setor agroalimentar, que movimenta US$7,8 trilhGes e emprega 40% da forca de trabalho global. A justificativa 6 que sem o seu uso o setor nao podera crescer no ritmo adequado nas proximas décadas e com isso nao atingira a necessidade da populagao mundial, que devera passar de 7,6 bilhdes em 2018 para bem mais de 9,8 bilh6es em 2050. Tecnologias, como blockchain, inteligéncia artificial (IA), machine /earning, robdtica, entre outras, tém apresentado beneficios econdmicos, ambientais e alimentares em suas aplicagdes no mundo. Por exemplo, ha pesquisas e casos que demonstram que o uso de blockchain para a rastreabilidade de cadeias alimentares gera agilidade na deteccao de alimentos em mas condi¢ées, permitindo uma reagao eficaz, como na deteccao de surtos em fontes especificas da cadeia por onde o alimento passou. As aplicagdes da IA tém auxiliado no melhor uso de recursos na agricultura. Por sistemas de monitoramento 24x7 (24 horas por dia, 7 dias por semana) atrelados a sensores e a modelos de predicao é possivel antecipar ou melhor avaliar determinadas decisdes, como a necessidade e 0 tempo de irrigacao do solo, entre outras. Outro exemplo é o uso de robés agricolas, também conhecidos como agribots, que estao sendo utilizados em diversos processos na pecuaria e na agricultura, apresentando reducgao dos custos de producao, melhoria da qualidade dos produtos e aproveitamento de insumos como fertilizantes, Agua e solo. Porém, apesar das vantagens apresentadas em alguns estudos e das promessas feitas pelas corporacdes de tecnologia, 0 proprio relatério da FAO aponta que nos préximos 10 anos havera uma mudan¢a dramatica no sistema agroalimentar, impulsionada por essas inovacées e tecnologias digitais avangadas, com impactos em toda a cadeia de producao e valor do campo. O emprego dessas tecnologias alterara desde o comportamento de agricultores, fornecedores de insumos, empresas de processamento e redes de varejo, responsaveis pela definicao de precos e comercializacao de \x0c", 'produtos, até as preferéncias e demandas do consumidor. De acordo com Sérgio Amadeu, em Tudo sobre Tod@s: redes digitais, privacidade e vendas de dados pessoais (2017), essas escolhas de consumo poderao se dar por meio de um processo de modulacgao comportamental, desenvolvido a partir da categorizacdao de perfis e de padrées de comportamento - gerados por meio da coleta, monitoramento e analises de dados pessoais. Este processo no campo resultara em estratégias e acées certeiras para induzir as pessoas a consumirem produtos especificos das corporagées do agronegécio que conseguirem adentrar no universo da digitalizagao de suas producées. Por fim, a posse dos dados dos consumidores finais podera viabilizar analises das imbricacgées do consumo, como os impactos na satide de quem consome ou nao produtos industrializados ou alimentos com agrotoxicos. Este volume de dados podera ser comercializado, por exemplo, com seguradoras, indUstrias farmacéuticas, entre outros, bem como servir de fonte para a criacdo de estratégias de negocios para atender uma demanda futura. Brasil e o Agro 4.0 O Brasil busca se inserir a todo custo nesse terreno de gestao do agronegécio hiperconectada, altamente otimizada, individualizada, inteligente e orientada por dados. Além da criagao da Camara do Agro 4.0 em agosto de 2019, como parte do Plano Nacional de Internet das Coisas, os Ministérios da Agricultura, Pecuaria e Abastecimento (Mapa), da Economia (ME) e da Ciéncia, Tecnologia e Inovagdes (MCTI) e a Agéncia Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) langaram, no dia 03 de setembro de 2020, o primeiro edital do programa Agro 4.0, visando investir R$4,8 milhdes em 14 projetos pilotos de adocao e de difusao de tecnologia 4.0 no agronegécio. De acordo com informac6ées presentes no edital, um dos itens comum a todas as quatro categorias de selecao (insumos; segmento primario/producao e colheita; segmento secundario/industria de transformagao; e integracgao de segmentos, incluindo segmento terciario) esta a capacidade de rastreamento e monitoramento da cadeia em que atuarao, ou seja, monitoramento de ponta a ponta. Isso exigira que as 14 empresas, entidades e/ou startups selecionadas coletem, armazenem e analisem dados da area de atuacgao e os compartilhem por 20 meses - através de respostas a questionarios e entrevistas para aprimoramento dos relatérios de avaliacao e inteligéncia - com os Ministérios envolvidos no programa, especificamente, com a Agéncia Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). O edital apresenta como resultados esperados “aumento de produtividade/competitividade e reducao de custos junto aos produtores e industrias envolvidas no projeto; maior disseminacao de tecnologias digitais no Brasil, por meio da rede de inovacao e dos dados gerados no projeto; maior seguranc¢a para o investimento de novos produtores, considerando os cases empreendidos; proposic¢ao de politicas publicas qualificadas, a partir de experiéncias e resultados do projeto; e disponibilizagdo de plataforma com conteudos e servicos”. Ao avaliar o edital em sua totalidade, nota-se que apesar do incentivo e da exigéncia para que haja coleta de dados ao longo da atuacao dos 14 selecionados - afinal o desenvolvimento de tecnologias digitais esta intrinsecamente atrelado aos dados - nado ha mencées e/ou instrucdes de como deve ocorrer essa coleta, onde e como os dados deverao ser armazenados, quem sao os atores que terao acesso, como ocorrera a troca dos dados entre esses atores e quais sistemas de seguranga da informacao deverao ser utilizados em cada etapa. Ha mencoes ao longo do edital de que informacgées sigilosas nado deverdo ser compartilhadas entre os atores e divulgadas, porém o documento nao especifica quais dados e informac6ées entrariam nessa categoria. O documento, ainda, nao faz nenhuma mencao a Lei Geral de Protegao de Dados, em vigor desde 18 de setembro de 2020 no pais, como diretriz fundamental nos processos em que seja necessario a utilizagdo de dados pessoais por parte dos atores envolvidos. Agro 4.0: rumo a extracao de dados Possuir os dados detalhados sobre as cadeias de producao e valor de um mercado, que em 2019 movimentou : : | PIB ‘iro, significa, no minimo, uma extrema vantagem competitiva, incluindo desde o produtor do agronegécio até empresas privadas de tecnologia digital. Nao a toa, os discursos dominantes - tais como aquele que indica que “o Agro é tech, 0 Agro é pop, o Agro é tudo” - apresentam as tecnologias digitais como a Unica e melhor alternativa para que o agronegocio cresca e mantenha sua vantagem competitiva em escala global. Para isso, a qualidade, diversidade e a quantidade de dados coletados precisam aumentar significativamente e de forma agil, nao importando por quem, quando e como os dados coletados serao manuseados. Paola Ricaurte diz que estes discursos dominantes estariam baseados em trés pressupostos: (1) os dados refletem \x0ca realidade; (2) a analise de dados gera conhecimento mais valioso e preciso; e (3) os resultados do processamento de dados podem ser usados para tomar melhores decisées sobre 0 mundo. Com base nessas perspectivas, o que vemos é nossos “eus digitais” e nosso universo de objetos e espacos sendo coletados, armazenados e transformados em conhecimentos que alimentam a acumulagao de capital ea concentracao de poder. Para Nick Couldry e Ulises Mejias 0 que esta em curso é 0 colonialismo de dados, que combina praticas de extracao predatérias do colonialismo histérico com métodos de quantificacao abstrata da computacao, no qual toda a vida humana é convertida em renda e lucro por meio dos dados. Assim, 0 co/onialismo de dados implica em novas formas de exploracao e apropriacao que resultam em dinamicas de discriminacao e de desigualdade. Dados digitais e o avanco da desigualdade no campo O avanco das tecnologias digitais no campo, que 0 governo de Jair Bolsonaro coloca em fungao do beneficio e da expansao do agronegocio, tem ampliado a desigualdade em relacao aos produtores rurais e agricultores familiares; e esse processo ainda esta sé no inicio. Apesar da recente pesquisa realizada em parceria entre a Embrapa, o Servico Brasileiro de Apoic as Miers e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre Agr Dic Brasil mostrar que 84% dos produtores rurais entrevistados utilizam ao menos uma tecnologia digital em seu processo produtivo, o maior volume desse acesso esta atrelado a consultas simples, como uso de aplicativos ou programas para obtengdéo ou divulgacdes de informacgées (WhatsApp e Facebook) e nao ao uso de tecnologias digitais avangadas como Inteligéncia Artificial, machine learning, entre outras. E fundamental observar que este é um cenario dispar. As inovacées e ferramentas tecnoldgicas que prometem tornar os sistemas agricolas mais eficientes, sustentaveis e economicamente mais rentaveis, como a agricultura de precisao, nao sdo projetados para que os pequenos produtores tenham acesso. A propria ldgica que compreende o desenvolvimento destas tecnologias aponta para isso: quanto maior o tamanho da propriedade e da escala de producao maior é 0 volume de dados que pode ser coletado e utilizado no desenvolvimento tecnoldégico. Além disso, para atender as diferentes necessidades do campo se faz necessaria uma ampla integracao entre diferentes tecnologias e processos para que os resultados sejam eficazes. Em outras palavras, 0 investimento para a aquisicao e implementacao de tecnologias digitais na producao tende a ser altissimo e inviavel ao pequeno produtor. Embora os beneficios das tecnologias digitais no campo sejam bastante explorados em publicacées e pesquisas, a sua implementagao aponta para processos de exclusdao e de desigualdade, seja diretamente no ambito do desemprego com a substituicao de mao de obra por processos robotizados (0 que caberia uma ampla e profunda analise), seja de forma sutil e indireta como na coleta e na analise de dados de toda uma cadeia de valor pelo grande produtor, que podera atuar em processos de modulacgao, como mencionado anteriormente, e atingir amplas vantagens competitivas, além é claro da possibilidade, a depender das tecnologias implementadas, de amplo monitoramento e vigilancia das pequenas producées no pais. Se ha algumas décadas o debate sobre as tecnologias no campo permeava a inclusdao digital e o acesso a rede, com o avanco das tecnologias e dos potenciais do big data, soma-se a preocupacao do fosso digital as implicacées que a exclusao no acesso e na implementacao dessas novas tecnologias gerarao ao trabalhador do campo, produtor rural e agricultura familiar, que além de constantemente enfrentarem os desafios sociais que os acercam, como a subsisténcia rural, a luta pela terra, o desemprego feminino e juvenil, entre outros, terao que lidar com uma economia dataficada sob 0 campo. Para que esse cenario seja revertido é fundamental que haja um plano de democratizacao dessas tecnologias no campo por parte do Governo Federal e nao um plano Agro 4.0, com direito a uma Camara especifica ao setor. A producao rural nado se resume ao agronegécio, segundo dados do Cen: ir cuario 7 (IB estabelecimentos de agricultura familiar foram responsaveis por 23% do Walor da producao nacional. No que se refere as culturas permanentes, o segmento foi responsavel por 48% do valor da producao de café e banana. Nas culturas temporarias, o segmento da agricultura familiar respondeu por 80% do valor de produgao da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da producao do feijao. Tecnologias digitais e o impacto na cadeia agroalimentar Eduardo Galeano ja alertava que “a soberania comeca pela boca”. As tecnologias digitais empregadas no campo terao impactos enormes em toda a cadeia de valor do setor e muitos desses impactos, como a modulagao comportamental, baseada na coleta e na classificagao de dados, ocorrerao de maneira silenciosa, na grande \x0cmaioria das vezes, sem qualquer conhecimento e consentimento dos envolvidos. Nada mais distante da soberania a que Galeano se referia. Nesse sentido, se torna urgente compreendermos o cenario que se apresenta para pensarmos saidas possiveis. Com limitagé6es em termos de dados sistematicos e oficiais sobre os atores que desenvolvem e operam tecnologias digitais voltadas ao agronegocio brasileiro, o faturamento e investimento desse setor, as sistematizacées de riscos e lacunas na adocao dessas tecnologias e as informacgées sobre como sera aplicado o quadro regulatério de uso e protecao aos dados coletados, nota-se a urgéncia, em um primeiro momento, do desenvolvimento de uma pesquisa aprofundada sobre o estado da arte atual deste mercado, considerando os impactos das tecnologias digitais em todas as etapas da cadeia de producao e valor, ou seja, do campo ao garfo. A partir deste mapeamento, seria possivel identificar os diferentes modelos de tecnologias empregadas no campo e quais desses modelos poderiam ser funcionais ao pequeno produtor e a agricultura familiar, para desta forma atuar com a ideia de apropriacao das tecnologias digitais para que sejam utilizadas em prol dos interesses da sociedade e nao somente como instrumentos a servico do capital e, especificamente, do agronegdécio no pais. A analise do impacto das tecnologias digitais na agricultura e no meio rural abre uma importante area de trabalho, que deve ir além do objetivo de acumular evidéncias e analises. Uma vez que compreendamos cada etapa do caminho do “campo ao garfo" e os diferentes elos das tecnologias digitais que operaram nessas correntes, sera possivel identificar gargalos para pensarmos possibilidades tecnoldgicas que trabalhem, ao menos, pelas perspectivas de inclusdo, avanco e transparéncia no campo. Joyce Souza é jornalista e cientista social. Doutoranda em Ciéncias Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC, pesquisadora do Laboratorio de Tecnologias Livres, coprodutora do podcast Tecnopolitica, membra do Movimento das Tecnologias Nao Alinhadas e organizadora do livro Sociedade de Controle: Manipulacao e Modula¢ao nas Redes Digitais. Comente sobre essa publicacao... Colunista Equipe Semana On Coluna editada pela equipe da Semana On. Vocé pode se interessar por... Covardes e Canalhas Aqueles que, contra todas as evidéncias, preferirem continuar apoiando Bolsonaro devem se preparar para o julgamento da histéria. O tempo costuma indicar com clareza de que lado ficaram os covardes e os canalhas Ditadura: o Brasil nunca acertou as contas com suas mentiras" Idelber Avelar fala de golpe, ditadura, filhotes de ditador e outros temas Politica e vida sexual se misturam? 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